"A liberdade do indivíduo não constitui um dom da civilização. Ela foi maior antes da existência de qualquer civilização, muito embora, é verdade, naquele então não possuísse, na maior parte, valor, já que dificilmente o indivíduo se achava em posição e defendê-la. O desenvolvimento da civilização impõe restrições a ela, e a justiça exige que ninguém fuja a essas restrições. O que se faz sentir numa comunidade humana como desejo de liberdade pode ser sua revolta contra alguma injustiça existente, e desse modo esse desejo pode mostrar-se favorável a um maior desenvolvimento da civilização; pode permanecer compatível com a civilização.
Entretanto, pode também originar-se dos remanescentes de sua personalidade original, que ainda não se acha domada pela civilização, e assim nela tornar-se a base da hostilidade à civilização. O impulso de liberdade, portanto, é dirigido contra formas e exigências específicas da civilização ou contra a civilização em geral. Não parece que qualquer influência possa induzir o homem a transformar sua natureza na de uma térmita. Indubitavelmente, ele sempre defenderá sua reivindicação à liberdade individual contra a vontade do grupo. Grande parte das lutas da humanidade entralizam-se em torno da tarefa única de encontrar uma acomodação conveniente – isto é, uma acomodação que traga felicidade – entre essa reivindicação do indivíduo e as reivindicações culturais do grupo, e um dos problemas que incide sobre o destino da humanidade é o de saber se tal acomodação pode ser alcançada por meio de alguma forma específica de civilização ou se esse conflito é irreconciliável.
Permitindo que o sentimento comum assumisse o papel de nosso guia quanto a decidir sobre quais aspectos da vida humana devem ser encarados como civilizados, conseguimos esboçar uma impressão bastante clara do quadro geral da civilização; contudo, é verdade que, até agora, não descobrimos nada que já não fosse universalmente conhecido.
Ao mesmo tempo, tivemos o cuidado de não concordar com o preconceito de que civilização é sinônimo de aperfeiçoamento, de que constitui a estrada para a perfeição, preordenada para os homens. Agora, porém, apresenta-se um ponto de vista que pode conduzir numa direção diferente. O desenvolvimento da civilização nos aparece como um processo peculiar que a humanidade experimenta e no qual diversas coisas nos impressionam como familiares.
Podemos caracterizar esse processo referindo-o às modificações que ele ocasiona nas habituais disposiçõesinstintivas dos seres humanos, para satisfazer o que, em suma, constitui a tarefa econômica de nossas vidas. Alguns desses instintos são empregados de tal maneira que, em seu lugar, aparece algo que, num indivíduo, descrevemos como um traço decaráter.
O exemplo mais notável desse processo é encontrado no erotismo anal das crianças. Seu interesse original pela função excretória, por seus órgãos e produtos, transforma-se, no decurso do crescimento, num grupo de traços que nos são familiares, tais como a parcimônia, o sentido da ordem e da limpeza – qualidades que, embora valiosas e desejáveis em si mesmas, podem ser intensificadas até se tornarem acentuadamente dominantes e produzirem o que se chama de caráter anal. Não sabemos como isso acontece, mas não há dúvida sobre a exatidão da descoberta. Ora, vimos que a ordem e a limpeza constituem exigências importantes de civilização, embora sua necessidade vital não seja muito aparente, da mesma forma que revelam indesejáveis como fonte de prazer. Nesse ponto, não podemos deixar de ficar impressionados pela semelhança existente entre os processos civilizatórios e o desenvolvimento libidinal do indivíduo.
Outros instintos [além do erotismo anal] são induzidos a deslocar as condições de sua satisfação, a conduzi-las para outros caminhos. Na maioria dos casos, esse processo coincide com o da instintivos), com que nos achamos familiarizados; noutros, porém, pode diferenciar-se dele. A sublimação do instinto constitui um aspecto particularmente evidente do desenvolvimento cultural; é ela que torna possível às atividades psíquicas superiores, científicas, artísticas ou ideológicas, o desempenho de um papel tão importante na vida civilizada. Se nos rendêssemos a uma primeira impressão, diríamos que a sublimação constitui uma vicissitude que foi imposta aos instintos de forma total pela civilização. Seria prudente refletir um pouco mais sobre isso. Em terceiro lugar, finalmente – e isso parece o mais importante de tudo –, é impossível desprezar o ponto até o qual a civilização é construída sobre uma renúncia ao instinto, o quanto ela pressupõe exatamente a não-satisfação (pela opressão, repressão, ou algum outro meio?) de instintos poderosos. Essa ‘frustração cultural’ domina o grande campo dos relacionamentos sociais entre os seres humanos. Como já sabemos, é a causa da hostilidade contra a qual todas as civilizações têm de lutar. Também ela fará exigências severas à nossa obra científica, e muito teremos a explicar aqui. Não é fácil entender como pode ser possível privar de satisfação um instinto. Não se faz isso impunemente. Se a perda não for economicamente compensada, pode-se ficar certo de que sérios distúrbios decorrerão disso."